Revista Sax & Metais
"Ser brasileiro é uma bênção"

por: Débora de Aquino
fotos: Regina Valente
Junho 2007 nº 9

Léa Freire é flautistas, pianista, compositora e proprietária do selo Maritaca,
formado por músicos e amantes da música, do qual se orgulha de poder
compartilhar e facilitar o acesso à boa arte.

Léa Freire
É uma musicita preocupada com os rumos que a identidade cultural brasileira vem tomando nos últimos tempos, mas capaz de manter uma visão muito positiva em relação ao potencial do brasileiro.

Aos 7 anos, Léa começou os estudos de piano e habituou-se a ouvir música erudita, principalmente músicos brasileiros como Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Radamés Gnatalli, passando pelos internacionais Bach, Chopin, Debussy, Lorenzo Fernandes e Francisco Mignone. Com este último, ela tem uma história especial: as músicas Valsas de Esquina foram fontes de inspiração para algumas de suas composições, como Maré, presente em seu novo CD Cartas Brasileiras.
Depois das primeiras incursões ao piano, teve de freqüentar as aulas de música obrigatórias na época do primário. Foi quando Léa começou a tocar flauta doce, passando mais tarde para a flauta transversal e, em seguida, para o violão. Nessa época, com 16 anos, entrou para o Clam (Centro Livre de Aprendizado Musical), escola de música do Zimbo Trio, em São Paulo. Teve como primeiros professores Roberto Sion Nestico. Tentou tocar saxofone, mas logo desistiu. "Já estava tocando um pouco de soprano, mas achava muito pesado. Comecei a ver que o sax não era coisa para mim: doiam-me as costas, formavam-se calo nos lábios... E eu tocava um Selmer que pesava uns 3 quilos e meio, achava pesado demais. Tocava três músicas e já queria sentar. Fiquei com o piano, o violão e a flauta."

Léa Freire
Apesar de toda a expectativa em torno de uma carreira promissora, em 1985 Léa abandonou a música por conta do nascimento de seu segundo filho. A flautista decidiu dedicar-se às crianças e à carreira administrativa, em que também é formada. Mas o destino a chamou para a música. Os filhos cresceram e a musicista resolveu gravar seu primeiro disco autoral em 1997, Ninhal, sem grandes pretensões. Foi justamente por meio deste trabalho que ela retornou à música e criou a Maritaca Records.
Hoje, soma diversas participações em trabalhos de gente consagrada como Hermeto Pascoal, Arismar do Espírito Santo, Nelson Ayres, Arrigo Barnabé, Guilherme Vergueiro, Mozar Terra e Michel Freidenson, entre outros, além de cinco CDs. Já a Maritaca tem mais de trinta lançamentos em CDs e dois livros de partituras. E a incansável Léa Freire não pretende parar tão cedo. Confira a entrevista à seguir:

Sax & Metais: Você começou com a música erudita e depois enveredou para a popular.
Fiz dez anos de piano erudito, mas nunca me enquadrei nas regras dessa escola. Serviu para que eu conhecesse os grandes compositores, Bach, Debussy, Chopin. Na década de 1970, época do rock, até cheguei a ter uma banda. Nunca fui muito de estudar, tive aulas de piano com o Amilson Godoy, o Tuca e com o Cyro Pereira, lá no Clam. Eles queriam que eu estudasse fórmulas de blues, ciclos de quartas no piano, mas eu não queria saber de nada. Nessa época, a Eliane Elias estava lá também, e desejava estudar esse material comigo, mas era demais para mim. Eleine já pensava na carreira e eu na minha vida de adolescente, namorados, essas coisas.

Mas você foi estudar na Berklee, não foi?
Na verdade, depois me casei com o José Neto, o Netão, guitarrista que hoje mora em Los Angeles, toca com o Airto Moreira e ele queria estudar na Berklee. Vendemos tudo e fomos para lá. Agüentei apenas duas semanas. Até me dei bem nos testes, tirei as melhores notas, mas achava muito chato. Não me dei bem com o método, tínhamos apenas 40 minutos de aula de instrumento por semana. Depois havia vários ensembles (grupos), que eram conjuntos que se formavam. Peguei os melhores, mas por causa da leitura. Não precisava ser um virtuose no instrumento, tinha de ler bem. A turma do quarto ano fazia umas coisas muito "modernas", mas era tudo cluster. E o pessoal só queria tocar jazz, jazz, jazz...
É engraçado isso, quando você vai para fora é que descobre o Brasil. Em seguida fomos para Nova York, aí eu ficava lá "tirando" Egberto Gismonti. Ia aos shows do Village Vanguard, do Blue Note, vários lugares de jazz. Eram gigs de US$ 50, tinha Ron Carter e outros grandes. Nessa época o jazz já não era o mainstream, o que fazia sucesso, mas havia muita coisa boa, por volta de 1978, 1979. Fiquei lá um ano e meio, e quando voltei para o Brasil estava completamente brasileira, só queria a nossa música.

Como foi essa volta para cá?
Foi em 1980 e o Guilherme Vergueiro (pianista) veio junto. Tinhamos feito metade de um disco lá, chamado Naturalmente, um disco dele, a outra metade fizemos aqui. Gravei com muita gente, tocava com todo mundo. Meu apelido era "Sargento Freire", porque quase não tinha mulher tocando. Hoje ainda é assim mas naquela época era pior.

Isso foi na época que você parou com a música?
Em 1981 nasceu minha primogênita, meu segundo filho nasceu em 1985. Eu toquei em um restaurante chamado Anexo até o dia 11 e ele nasceu em 15 de julho. Com dois filhos, resolvi parar. Precisava trabalhar em outra coisa para poder ganhar dinheiro e sustentá-los. Ninguém é músico no Brasil para ganhar dinheiro, é por paixão mesmo. Parei por 11 anos, vendi os instrumentos, menos a flauta em Sol, que é a mesma que tenho até hoje. Mudei-me para o interior de São Paulo. Tocava piano em casa, compunha... Era um piano de armário que hoje está na Maritaca. Nessa época, o Sizão Machado (baixista) tocava com a Joyce (cantora), gravou uma fita cassete com composições minhas e levou para ela. A Joyce fez a letra em umas cinco delas, gravou, foi para a Alemanha e para a Inglaterra. Em 1994, resolvi fazer um CD com músicas minhas, sem pretensão alguma. Era uma coisa para mim, tipo álbum de família.

Depois de ter gravado um trabalho e ouvi-lo com o passar do tempo, você tem a impressão de que se fizesse novamente poderia ser melhor?
Melhor não, diferente. Cada momento tem o seu melhor. Todo projeto não é uma coisa que termina mas que se abandona. Depois de gravado, você pode ficar mexendo naquilo infinitamente. Mixagem então, você pode pensar: "Mas se eu tivesse feito assim...". Por outro lado, aquilo tem uma personalidade, uma história do que estava rolando aquela época, o que é interessante. Quando ouço o Ninhal ou o Quinteto, me surpreendo com coisas de que nem lembrava mais. A crítica só serve para não fazermos as coisas. Por isso, na hora de fazer, temos de abandonar essa idéia, essa coisa culta, temos de partir para a diversão, e o que sair é a sua verdade. Muitas vezes é errando que se acerta.

Como você percebe o que não é para fazer?
Tento nem pensar nisso, minha escola musical é de não querer saber muito das coisas. Faço um monte de músicas, e preciso cifrá-las para poder escrever. Nesse momento, não quero saber o que está rolando, porque é quando eu sei se é maior ou menor. Mas então começam as novas quintas, baixos trocados... Passo horas nesse processo. Prefiro escutar. Troquei 340 escalas, acho que é mais ou menos esse número, por doze notas, é bem mais fácil. Aí você procura ouvir as pessoas que estão com você fazendo sons diferentes, usando outras escalas, e vai tentando incorporar tudo, ouvindo nota por nota. Nunca consegui estudar aquele monte de escalas, me dá uma irritação profunda. Não estou dizendo para não fazer, veja bem. Eu é que não tolero. Mas se você gosta, é muito bom, que sorte!

Então como estudar?
Sempre gostei de tirar os solos de grandes músicos sem o instrumento. Essa que é a idéia. Tenho um ouvido relativo estudado, trabalhado. Minha mãe tem ouvido absoluto, já nasceu sabendo e tudo é óbvio demais para ela. Comecei a tirar músicas ainda menina, depois ganhei uma flauta doce no ginásio e ficava tirando as músicas durante as aulas normais, sem instrumento. Olhava para o professor, mas pensava na música. Depois, no recreio, testava o que achava certo. Se tinha algum erro, pensava naquele intervalo e estudava durante as outras aulas, corrigindo o erro e tirando o resto da música. O resultado disso é que, hoje, quando ouço algo, sei que é a nota, se tiver uma referência. Tem dias em que acordo afinada, às vezes meio tom abaixo ou acima, mas sempre próximo. Há coisas complicadas que vejo e que me deixam perdida em questão de meios tons, então esses são os sons que vou ouvir mais até conseguir realizar.

Você já tocou músicas bem complicadas com o Guilherme Vergueiro.
Nós nos conhecemos em Nova York. Quando voltei para o Brasil, tocamos juntos em quarteto durante um tempo, depois fizemos o duo. Ele escrevia algumas coisas que não eram para flauta de jeito nenhum. Saltos que, no piano, basta mexer a mão para a direita e para a esquerda, mas na flauta não. Ele fazia muitos arranjos para formações grandes e depois reduzia para o duo, ou seja, eu fazia o papel da orquestra na flauta.
Eu gostava e gosto do desafio, essa coisa de "você não consegue, você não pode" me tira do sério, é aí que eu pego pra valer e faço acontecer. Mas abandonei essa fase de tocar virtuosamente há muitos anos, mesmo porque fiquei 11 anos sem tocar, e não é fácil retomar. Também tem o fato que eu não escuto mais muita coisa em minha cabeça, o que pinta são umas melodias.

Essa questão de virtuosismo, de tocar muitas notas e rápido, dizem que é questão de maturidade. Concorda com isso?
Sim, e posso citar o meu trabalho com o Bocato, Antologia da Canção Brasileira Vol. 1 e Vol. 2, lançado em 2005. Ali é "menos, menos..." então, quando está começando a ficar muito animado, penso "menos, menos..." Isso é um teste de fogo, porque como é pouca coisa, tem de ser lindão. Não pode pegar 5, 6 segundos e dar a nota errada. Tem de ter um freio no pescoço para não puxar o tempo para frente. É difícil. A sonoridade tem de estar boa, a cabeça tem de estar legal e se não estiver você tem de se reorganizar. Funciona também como meditação, música também é uma questão de saúde. Tem o lance de refletir, de se emocionar. Você pode se apaixonar e desapaixonar. É possível fazer uma grande viagem em 2 minutos e meio, que é o tempo de uma faixa de disco não tem contra-indicações nem efeitos colaterais.

Você parece ter uma personalidade forte, até por não se enquadrar muito em métodos de aprendizagem.
Sim, isso vem do fato de passar muito tempo tocando só com homens. Sempre fui muito de fazer as coisas do meu jeito, de ser muito independente. É um jeito que me valeu o apelido de "Sargento Freire". Hoje é mais relaxado, é Tia Léa, mas que também impõe certo respeito, principalmente para a garotada. Para você ver como eu era sargento, passei a levar o Teco (Cardoso) para as baladas em que eu tocava e ninguém nunca me questionou por isso, por colocar duas flautas na mesma banda. Eu queria assim. Já chegava apresentando e saíamos tocando.

Isso ocorre quando você participa de trabalhos como o CD do Arismar do Espírito Santo (Foto do Satélite)
Tocar com o Arismar é como um colo de mãe, se você se perder ele vai junto. Ele percebe tudo e fica só esperando para ver para onde você vai. Uma vez estávamos tocando em Curitiba e ele foi chegando perto de mim, e o som rolando, e disse: "Léa Freire, nós estamos no A ou no B?". Foi o máximo. Se gravarmos uma coisa dessas, que aparentemente foi uma porcaria, na hora de ouvir é o maior som, tem uma série de considerações que a gente não domina. Se você está feliz provavelmente está tudo certo.

Como surgiram as primeiras idéias do seu novo CD (Cartas Brasileiras)?
Meu viés erudito foi o começo de tudo, Lorenzo Fernandes, Francisco Mignone com as Valsas de Esquina, Villa-Lobos, impressionistas franceses, Erik Satie, Debussy e outros, como Chopin e Bach. Eu ia compondo e mostrava para o Teco e pensando na idéia de fazer um CD com características mais camerísticas. Que fosse sofisticado mantendo o sabor, o tempero, o ritmo brasileiro, sem ser crossover, que é tocar música popular com instrumentos de sinfônica. A idéia é construir um caminho, uma fronteira, que no Brasil não é muito definida. Aqui o erudito e o popular são mais próximos do que no resto do mundo. Temos Radamés Gnatalli e Tom Jobim, que são pessoas que ficam nessa fronteira. É uma música que se mistura, e nem existem traços de culturas que estão no Brasil desde o início dos tempos - indígenas, negra, européia, africana, é uma soma de continentes. Eu queria que fosse uma música rica em harmonia, melodia e ritmo, não só batuque, ou só melodia. O Teco, como produtor musical, ia sugerindo coisas, trocamos muitas idéias e fomos construindo a produção do disco. Em seguida chamamos o Gil Jardim. A princípio eu queria que ele fizesse os arranjos do disco, porque dos maestros de hoje ele é "o cara", acho que ele transita bem entre esses dois mundos. Então me disse que eu é que escreveria os arranjos. Já tinha escrito um, e para mim estava bom, lindo maravilhoso e é só... (risos). Seria cinco músicas com arranjos sinfônicos, ele se propôs a fazer um que foi o Choro na Chuva, as outras ficaram para eu fazer. Isso foi em outubro e nos gravamos em fevereiro.

É um trabalho enorme.
Essa coisa de escrever para orquestra começou em 2004 e é uma loucura, um mundo novo. É como se estivesse subindo o Himalaia, cada instrumento é um universo. Então é necessário escolher, dentre essas possibilidades todas, aquelo que representa o som que você quer, além de saber quantos instrumentos de cada é preciso ter para encontrar equilíbrio. Quantos violinos para quantas trompas, para obter determinado efeito. Hoje, há poucas orquestras para poder experimentar, tive mesmo de "meter as caras". Durante meses não fiz outra coisa se não correr atrás de instrumentos sinfônicos, livros de orquestras, tudo que se possa imaginar. O Gil e o Teco me davam pilhas de CDs de música contemporânea orquestral. Descobri coisas como harmônicos para cordas, que tem no começo de Nove Luas. Mas eu não tinha a grade, e para tê-la teria de encomendar nos EUA, demoraria um tempo para chegar e eu não podia esperar. Fui falando com os instrumentistas, pedindo dicas, o que dá e o que não dá para fazer, como se escreve determinado efeito, virei achata dos ensaios de orquestra (risos).

E o resultado é um disco bastante diversificado e matéria de formações. Tem desde quinteto de clarinetes, com participação do Sujeito a Guincho, passando por quinteto de jazz, até sinfônica. Foi pensado assim?
Não é um disco só meu, é também de quem participou. Há arranjos do Proveta, do Gil Jardim, do Mozar Terra, do Thiago Costa... E mesmo assim há uma identidade comum, constrói-se uma obra coletiva e que fala de uma trajetória, não é uma coisa de moda. É um trabalho artesanal, cooperativo, cheio de emoções como ternura, carinho amizade, companheirismo, paixão pelo que se faz, alegria de estar com os amigos, coisas que hoje infelizmente estão fora de moda. Durante as gravações aconteceram coisas surpreendentes, como com Caminho das Pedras, música que tem arranjo com o bandolim do Izaías. Eu imaginava uma valsa-choro, mas na hora em que ele tocou, virou um fado, lindo. Foi a percepção dele. Todas as contribuições foram maravilhosas. Paulo Bellinati, André Mahmari, Toninho Carrasqueira, Sujeito a Guincho, Proveta, Gil Jardim, Teco Cardoso, todos os solistas que participaram, o Israel, a Orquestra, o Guello, o Pitoco, o Felipe Senna, o Thiago Costa, o Sylvinho Mazzuca, o Daniel D'Alcântara, o Victor Alcântara, o Gil, o François, sei que vou esquecer de alguém (risos).

Qual foi a Orquestra que participou do disco?
Gravamos com uma orquestra convidada, misturando músicos da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) e da Orquestra Municipal de São Paulo. As cordas são basicamente da Osesp.


Um Show Especial
Em maio, a flautistas tocou com a Orquestra da Ocam (Orquestra de Câmara da USP) no Auditório do Ibirapuera, em uma apresentação concorridíssima. Para esse show, Léa reescreveu todos os arranjos para tocar com a orquestra. "No disco tenho várias formações. Há uma faixa com o quinteto de clarinetes Sujeito a Guincho; com a Mônica Salmaso, que é piano e voz; com o quinteto de jazz...
Substituí esses arranjos para aproveitar a orquestra no palco", explica a instrumentista.

Discografia
1997 - Ninhal
1999 - Quinteto - Teco Cardoso, Léa Freire, Benjamin Taubkin, Sylvio Mazzuca Jr, e AC dal Farra
2005 - Antologia da Canção Brasileira
Vol. 1 e Vol. 2 - Léa Freire e Bocato
2007 - Cartas Brasileiras

Setup de Léa Freire
Flauta baixo Gemeinhardt
Flauta em G Armstrong
Flauta em C Hynes
Microfone Ramsa de lapela

O que vem por aí
A Maritaca Records, selo de Léa Freire, promove ótimos lançamentos de música instrumental até o fim deste ano. A flautista nos adiantou as novidades com exclusividade. Confira:
• Duo Laércio de Freitas e Alessandro Penezzi, tocando Jacob do Bandolim
• Homenagem a Benedito Lacerda - professor Paulo Flores, do Conservatório de Tatuí. "Ele conseguiu aprovar um projeto pela Petrobras para o resgate da obra deste grande músico brasileiro - chama-se Benê, o Flautista. Será uma série de três caixas , cada uma com quatro discos", conta Léa

• Livro de partituras com as "grades" da Banda Mantiqueira, os arranjos do disco Terra Amantiquira.
"Já falei com o Proveta e ele está bem a fim de fazer", revela.

• CD gravado na Dinamarca com a própria Léa, além de Teco Cardoso, Thomas Clausen, Afonso Correa e Fernando De Marco. "O Thomas é um pianista muito famoso lá, já gravou com gente como o Miles Davis e outras feras do jazz, mas gosta muito é de música brasileira."

<  voltar  -  topo   


© Revista Sax & Metais