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A seleção de canções de Léa Freira e Bocato
por:
Rafael Fernandes

14.06.2006

Léa Freire e Bocato apresentam em Antologia da Canção Brasileira – volumes 1 e 2 (selo Maritaca) – uma seleção de canções nacionais em versões instrumentais com músicos craques. Além dos “capitães” Léa (flauta-baixo) e Bocato (trombone), a escalação é de primeira: Michel Freidenson (piano), Djalma Lima (guitarra), Sizão Machado (baixo) e Edu Ribeiro (bateria), que atuam em ambos os volumes de Antologia da Canção Brasileira, dois dos mais belos discos em homenagem à nossa música lançados nos últimos tempos. Discos ao mesmo tempo com linguagem próxima ao cool jazz e tão brasileiros.

No encarte do primeiro volume, Léa Freire conta como o conceito foi surgindo de uma idéia de Bocato para “um projeto de trombone e flauta-baixo para canções brasileiras, músicas lentas, harmonias caprichadas, improvisos melódicos”, e que num primeiro momento pensaram um nomear o projeto com algo como "última fronteira – baladas brasileiras". Apesar de essa intenção não ter permanecido a imagem de “balada” é muito indicativa do que são os discos, mesmo não sendo exclusivamente de baladas. Isso porque delicadeza e leveza são marcas do projeto. Ficou o conceito de gravar uma série de canções da música brasileira – farto material – para compor (inicialmente) dois CDs: um apresentado como Léa Freire e Bocato e o segundo Bocato e Léa Freire cada um evidenciando o trabalho do “primeiro nome”, mas com participação marcante dos dois em ambos os discos.

Tais discos são tão bons que têm utilidade múltipla. Pedem para ser ouvidos contemplativamente, de maneira solitária, para degustar as sutilezas, surpresas, soluções harmônicas e melódicas brilhantes em sua completude. Mas também pode ser uma audição eterna e sublime para os apaixonados. E para os que estão passando por uma bela duma dor de cotovelo. Serve também como “música para colocar de fundo” (em festas, bailes e afins), mas ao invés de concessões, versões “abregalhadas”, música de elevador, comercialismo barato, sofisticação apenas como verniz, há a alta qualidade e rigor musical, sem que esse rigor se torne mecanicismo – longe disso, é o rigor a favor da beleza. E pode ser extremamente útil para estudantes de música, que podem ter – com os dois volumes – “aulas” de melodia, harmonia, improviso, criatividade, inventividade, intensidade, execução, etc., etc., etc. Entre os grandes méritos do disco também está o fato de ser fácil assimilá-lo à primeira audição, é leve e fluído. Porém, o precioso não está na superfície: está no profundo, no detalhe, no sutil.

Destaques são muitos, difícil selecionar. O volume 1 – mais focado em Léa Freire – abre com “Andorinha” (de Tom Jobim, que está em seu disco Stone Flower, de 1970) com fabulosos duetos e solos de Léa e Bocato, além de intenso solo de Sizão Machado. Também se destaca a deliciosa interpretação de “Imagens” (Luiz Eça/Aloysio de Oliveira) com maravilhoso arranjo e interpretação de Léa Freire – é daquelas audições que nos fazem querer mais nada na vida. Há “Nunca”, linda balada de Lupicínio Rodrigues na qual Djalma Lima demonstra elegância na guitarra. “As Rosas Não Falam”, clássico inapelável de Cartola aparece em uma versão genial e é apresentada de forma arrebatadora e surpreendentemente concisa (1 minuto e 55 segundos). O arranjo – o único de Bocato no volume 1 – mostra porque ele é um dos mais geniais músicos que já pisaram na face da terra. Em “Nossos Momentos” (Haroldo Barbosa/Luiz Reis), o arranjo de Léa Freire consegue passar – sem uma palavra, obviamente – o clima que a letra transmite, porém sem seu exagero sentimental (como “Teu castelo de carinhos/ Eu nem pude terminar/ Momentos Meus/ Que foram teus/ Agora é recordar.”).

O Volume 2 – mais focado em Bocato – abre sua antologia com “Feitio de Oração”, clássico de Noel Rosa e Vadico em versão bossa, que mais uma vez abre espaço para a presença da ótima guitarra de Djalma Lima; destaque ainda para lindo solo de Bocato. “Pra Dizer Adeus” (Edu Lobo e Torquato Neto) é apresentada em versão cortante; a atuação dos músicos nos discos poderia ser resumida nessa música: o respeito ao espaço de cada um, mas ao mesmo tempo atuando de uma forma complementar, em sinergia incrível. “Notícia” (Nelson Cavaquinho/Guilherme Britto e Alcides Caminha) ficou uma beleza – Bocato desfila suas melodias de maneira sublime; e “Lígia” (Tom Jobim) é um convite à fossa, por sua interpretação profunda e densa. “Risque” (Ary Barroso) é outro genial arranjo de Bocato, quase “primo” de “As Rosas Não Falam”, do volume 1, pelo fato de harmonia e ritmo serem conduzidos por uma “parede” de trombones. Em “Pra Machucar Meu Coração” (Ary Barroso), mais uma vez a execução realça a temática da canção. Agora, um solitário Bocato toca a melodia exaltando a dor, ilustrando brilhantemente – apenas com seu trombone – o momento do personagem da canção (“Está fazendo um ano e meio, amor/ Que o nosso lar desmoronou(...)/ E uma cruel desilusão/ Foi tudo que ficou/ Ficou/ Prá machucar meu coração”). Destaca-se também nos dois discos o baterista Edu Ribeiro, nunca menos que brilhante em todos os projetos em que atua.

Essa dupla de CDs (que talvez virem mais de dois, pelo que está explicado no encarte – torçamos para isso) é realmente sublime, um convite à reflexão, à emoção, à paixão. É a prova de que música boa pode tranquilamente unir sofisticação e simplicidade; pode atingir qualquer público com audição prazerosa sem concessões artísticas e estilísticas. É a prova também que disco bom é o que não falta – é só ter um pouco de trabalho na procura e no critério de escolha.

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