Estado de Minas
Série revive a flauta imortal

Por: Kiko Ferreira
MG 23/07/2007

Projeto resgata obra de Benedito Lacerda,
que foi também parceiro de Pixinguinha

Benedito Lacerda & Pixinguinha
Trinados e chiados históricos reproduzidos com a ltafidelidade. Mitos e folclores tratados com honestidade e pragmatismo. E um trabalho de recuperação e reunião de acervo minucioso, reunindo fontes e organizando informações. São características de uma obra literalmente de fôlego, a série Benê, o flautista, cujo primeiro volume, com quatro discos e um precioso encarte de 94 páginas de muita informação, já está nas lojas, distribuído pela gravadora Maritaca, da flautista Lea Freire.

O objeto do caprichado trabalho, coordenado pelo músico Paulo Flores, é o flautista, compositor, arranjador, militante dos direitos autorais, chorão e carnavalesco Benedito Lacerda. Dono da flauta imortal, como diria o cronista Aldir Blanc, de gravações históricas de Pixinguinha, como 1x0, Os Oito Batutas, Ingênuo e Naquele tempo, ele recebe tratamento de ícone no projeto, que só estará completo depois de lançados três caixas de quatro CDs. Esta primeira começa com seu trabalho à frente do grupo Gente do Morro, que criou e liderou a partir de 1930; segue com um segundo volume, cinco estrelas, das parcerias com Pixinguinha, em gravações feitas entre 1946 e 1951; e termina com dois discos dedicados a som regional, o preferido de estrelas como Carmem Miranda, Francisco Alves e Noel Rosa.

TRINADOS Nascido na cidade fluminense de Realengo, em março de 1903, e morto, de câncer no pulmão, causado pelo cigarro, em 1958, Benedito deu seus primeiros trinados na flauta no começo da adolescência, mas só foi estudar a sério depois dos 17 anos, quando foi morar no morro do Estácio, no Rio, uma das fontes mais originais e ricas do samba carioca. Passou boa parte dos anos 1920 tocando na orquestra da Polícia Militar e, na segunda metade da década, entrou para o grupo Boêmios da Cidade e passou a se revezar entre a flauta, nos grupos de choro e samba, e o sax, nas sessões de jazz. Na década de 1930, criouo grupo Gente do Choro, montou com Noel Rosa outro para divulgar o samba além das noites cariocas e se tornou não só um acompanhante requisitado em rádios e estúdios de gravação como um compositor premiado, principalmente de temas juninos e carnavalescos. Tocou em cassinos, foi fundador da União Brasileira dos Compositores (UBC) e Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (Sbacem), na luta pelos direitos autorais.

Profissional requisitado e bem-sucedido, foi acusado de plágio pela marchinha Jardineira, de 1939, que teria sido inspirada num motivo popular do século 19. E vítima do folclore de ficar atrás de um biombo, no Café do Mangue, surrupiando sambas de jovens compositores, levados ao bar pelo percussionista Baiaco. Mas seu maior mérito foi o de trazer Pixinguinha, fora de ação e de mercado por problemas de alcoolismo, de volta à cena. Assumindo a flauta enquanto o autor de Carinhoso empunhava o sax, foi responsável por dezenas das mais importantes gravações da história do choro e da música brasileira. Daí a acusação de que o amigo, agradecido, tenha dado a ele parcerias artificiais, num acordo de cavalheiros semelhantes aos de duplas como Lennon e McCartney e Roberto e Erasmo.

CLIMA ORIGINAL A audição dos quatro CDs, que trazem faixas retiradas de acervos como os dos pesquisadores José Ramos Tinhorão e Antonio De Franceschi, do selo Collector’s Studio e do Instituto Moreira Salles, ganha significado extra por um motivo técnico. O engenheiro de som Homero Lotito e o coordenador Paulo Flores observaram que a maior parte dos originais de 78rpm tinham problemas de rotação, com alterações de afinação e andamento. Fizeram uma padronização de afinação na nota “lá” com freqüência de 440Hz e preferiram, em alguns casos, manter parte do chiado original, para não perder alguns timbres nem tornar outros artificiais. O efeito é que se ouve um som mais natural e agradável, numa recuperação de climas originais ausente em muitos projetos semelhantes. O encarte traz, além de letras de músicas, fichas técnicas e detalhes de gravação, um glossário com breves biografias de 65 personagens ligadas a Benedito e uma linha do tempo relacionando os principais fatos de sua vida com a história do mundo e do país. O conjunto compõe preciosa fonte de prazer e conhecimento sobre um polêmico e genial músico brasileiro.

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