Revista Cover Guitarra
Bahia de Todos as Cordas
por:
Fábio Carrilho
Dezembro 2009 nº 176

Jurandir Santana produz ótimo álbum instrumental combinando a liberdade jazzística com ritmos brasileiros. Na sua função gêneros baianos como o ijexá e o samba duro não ficaram de fora

Jurandir Santana
A música brasileira deve muito aos baianos. Atualmente, a associação imediata que fazemos à produção musical deste Estado remete ao som dos tambores e dos ritmos de blocos afro como Ile Ayê, Araketu e Olodum. Incrível pensar que desta mesma Bahia saíram ícones de linhagens tão díspares como Dorival Caymmi, João Gilberto, Caetano Veloso, Raul Seixas, isso sem contar Dodô e Osmar, criadores do trio elétrico.

Quanto o assunto é guitarra, a dívida com os baianos é ainda maior. Basta pensarmos na revolução criada por João Gilberto com a sua batida de violão e visão harmônica revolucionárias ou então na genial fusão do rock com música brasileira de virtuoses como Armandinho e Pepeu Gomes. A “escola baiana de guitarra”, felizmente, segue ativa e bem representada por músicos como Jurandir Santana. Só Brasil é o nome do álbum instrumental que o guitarrista lançou recentemente. Formado basicamente por composições autorais, este ótimo trabalho prova que existe um imenso território a ser explorado no jazz brasileiro por meio da incorporação de ritmos locais tradicionais. Cover Guitarra bateu um papo com Santana, que falou deste lançamento e da sua maneira pessoal de fazer música.

Em Só Brasil, os ritmos brasileiros serviram de base para que você desenvolvesse suas músicas. Como costuma compor? O ritmo é o que vem primeiro?
Não sigo uma regra. Às vezes, penso em um groove de violão ou guitarra e, a partir daí, desenvolvo o tema. Posso também começar por uma melodia e criar tudo a partir dela. Depende muito da inspiração. Quando faço um arranjo ou componho, nunca me prendo em determinado ritmo, gosto de misturar. Neste disco, por exemplo, tem uma música chamada “Axeji”, que é um ijexá, um ritmo trazido pelos africanos ao Brasil. Quando estava gravando, sentia falta de algo que desse mais movimento à parte A. Então resolvi colocar células de outro ritmo baiano, o samba duro, e deu tudo certo. Vivo em Salvador, um lugar onde o culto ao ritmo é muito grande, portanto acabei desenvolvendo naturalmente isso em mim.

Suas músicas primam muito pelos arranjos. De uma maneira geral, esta é uma característica do jazz brasileiro em relação ao jazz americano, pelo menos quanto ao som realizado por grupos de formação pequena, não acha? Como você enxerga a importância do arranjo na sua música?
Realmente, o jazz brasileiro tem essa característica. No caso do jazz americano, muitas vezes o tema é só um pretexto para se improvisar, sem generalizar, é claro. Para mim, o arranjo é peça importante em uma música. Componho e faço o arranjo ao mesmo tempo. São coisas inseparáveis, primo muito por ele. Depois da composição, o arranjo é a sua identidade musical. Ele pode colocar o trabalho no céu ou destrui-lo completamente.

Na faixa “Enquanto Não se Resolve”, você “brincou” bastante com as tensões dos acordes. Em uma escala de zero a dez, que medida de importância você daria ao quesito “harmonia” na sua música?
Nesta tema, utilizo muito a tensão de quinta diminuta. A música é um baião e essa tensão é utilizada neste estilo. Dá um efeito maravilhoso e nos remete ao sertão brasileiro. Dou nota 10 para a importância da harmonia na minha música. Se você a domina e sabe onde quer chegar, pode transportar as pessoas para vários lugares de acordo com as texturas harmônicas usadas. Para mim, harmonia é tudo!

Você possui uma linguagem de improviso e um grande fôlego de idéias. Como costuma estudar improvisação?
Existe muitas maneiras de se estudar improvisação. Primeiro, o guitarrista tem que ter amplo domínio de harmonia, dos campos harmônicos e também conhecer o braço do instrumento, harpejos, etc. O próximo passo é pegar o vocabulário do estilo que você quer tocar e ouvir muito. Gosto de ouvir instrumentos diferentes da guitarra, como piano e sax, pois possuem uma maneira difrente de abordar os solos. Paralelamente , o instrumentista tem que tirar alguns solos e escrever, para visualizar e entender o que está sendo tocado na gravação. E, por fim, a prática é muito importante. Seria bom tocar todos os dias em grupo, de preferência ao vivo.

Gosta mais de trabalhar o improviso pensando em acordes (verticalmente) ou por escalas (horizontalmente)?
No improviso, trabalho das duas formas. Uso mais a forma vertical para mudanças rápidas de acordes diatônicos, uso a forma horizontal. Na verdade, não há uma regra. Foi a maneira prática que encontrei para desenvolver a improvisação.

Você tem uma pegada de violão que lembra bastante Gilberto Gil, especialmente nas faixas "Embaraçado", "Axeji" e no arranjo de "Cravo e Canela". Gil realmente é uma influência instrumental para você, por exemplo, pelo modo como ele simula sons de acordeom e de percussão no violão?
Sim, claro. Gil é um mestre para mim, cresci ouvindo ele. Mais tarde, descobri um outro violonista e compositor, chamado Roberto Mendes, baiano de Santo Amaro e contemporâneo de Gil, com que tive a oportunidade de tocar e definir o meu jeito de tocar violão.

Quais critérios você seguiu para determinar o repertório deste álbum? Você inseriu algumas regravações, como "Cravo e Canela", de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos.
Já vinha trabalhando essas músicas há três anos em shows e pude sentir o feedback das pessoas. Quanto às gravações, todas tem uma história comigo. "Cravo e Canela" é uma música pela qual sou apaixonado, sempre tive vontade de gravar, mas não queria fazer uma versão qualquer. "Alma Brasileira", do maestro Zeca Freitas, também é um tema que adoro e sempre tocava nas jam sessions pelo Brasil. A determinação do repertório seguiu-se pela necessidade de abordar certos ritmos que não eram tão explorados, como a chula do Recôcavo Baiano , o samba duro, o ijexá, dentre outros. Não queria fazer um disco só com timbres de guitarra, por isso optei pelo violão e, na execução dos temas, por outro instrumento melódico em iníssono dividindo as melodias, como a flauta e a voz.

Sabemos que a Bahia já revelou grandes guitarristas, principalmente na década de 70, com Pepeu e Armandinho, e agora na década de 90, temos o Davi Moraes. O estilo desses músicos é um grande caldeirão sonoro, apesar de não puxar tanto para o jazz. Existe uma escola baiana de tocar guitarra?
Para mim, a Bahia tem uma escola baiana de guitarristas. O Armandinho fez uma escola da guitarra baiana, do frevo e do ijexá. Ele e o Pepeu são grandes influências para mim. Agora estou fazendo uma trabalho com o Armandinho e a cada dia aprendo mais, pois se trata de um grande mestre da música brasileira. Davi e eu somos praticamente da mesma geração. Gosto muito dele, tem uma mão direita incrível . Acho que todos os músicos baianos tem esse caldeirão na cabeça, pois somos muito intuitivos. Além disso, para entrar no mercado baiano você tem que tocar muitos estilos, como rock, música latina, africana, reggae, etc. Acho que isso define muito a escola de guitarristas da Bahia.


CD Só Brasil
Neste álbum, Jurandir Santana mostra ser muito mais do que "apenas" um ótimo instrumentista. Bastante inspirado, ele assina sete das dez faixas e também os interessantes arranjos que valorizam suas performances tanto na guitarra quanto no violão.
A faceta violonística de Santana, por exemplo, aparece nas faixas "Embaraçado", com o músico emulando sons de acordeom, e "Enquanto Não Se Resolve", que tem levada de coco e harmonias dissonantes. Quanto às texturas sonoras, Santana conseguiu um ótimo resultado no ijexá "Axeji" e na delicada "Sete Dias" dobrando os timbres limpos de sua Ibanez com o sax soprano de Teco Cardoso e com a voz de Joana Boccanera, respectivamente. Já o lado improvisador aparece no samba-canção "Jura Não é Demais" que recebeu belo arranjo de cordas e teve ótimo solo de guitarra elétrica, assim como no samba estilizado "Barra do Paraguaçú".
Entre as regravações, estão o samba-choro "Alma Brasileira", do maestro Zeca Freitas, e "Cravo e Canela", de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. "Claudinha" que possui métrica quebrada em 7/4, e o rápido frevo "Kaio no Frevo" fecham este belo álbum. (FC)

Equipamentos
Guitarras: "Ibanes semiacústica FG-100 (1984) e Fender Stratocaster American Standard (1989)
Pedais: "Não usei pedais na gravação. Nas minhas guitarras, usei vários pré-amplificadores, como o Avalon VT 737, o Neve 1084 e o 1073".
Cordas: "D'Addario (guitarras) e D'Addario e Savarez (violões)".
Amplificadores: "Usei um Fender Twin Reverb com dois tipos de microfonação e ligado em vários prés".
Violões: "Ramirez e Suguiyama (1980). Quando queria dar um toque essencialmente brasileiro, usava o Suguiyama. Para sons mais leves e definidos, usei o Ramirez".

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